O Medo à Liberdade
(1983), originalmente publicado nos EUA, em 1941, em plena Segunda
Guerra Mundial, pelo filósofo, sociólogo e psicanalista Erich Fromm, é
uma das mais importantes críticas psicossociais do autoritarismo, da
destrutividade e do conformismo típicos do séc. XX. Para a visão
profundamente humanista do autor, a razão capaz de explicar esses
fenômenos é uma mescla de observações dos aspectos psicológicos da
neurose com os fatores sociais que a impulsionam e a alimentam. Tudo sob
o princípio filosófico existencial de que, nas escolhas da vida, a
liberdade humana entre evoluir ou regredir é uma obrigação, uma
responsabilidade que ninguém pode se furtar.
Sua tese é que na presente busca do sucesso financeiro, ao lado da
liberdade material conquistada ao longo da história do ocidente, os
indivíduos se isolaram cada vez mais uns dos outros. Essa mesma
liberdade econômica, carregada de solidão, tornou-se motivo de medo e
angústia, levando as pessoas a desejarem uma fuga psicológica de
alienação, por meio de ilusões de “terem” algo ou de “pertencerem” a uma
corporação ou grupo que lhes fariam sentir menos sós. Se na antiguidade
o perigo era os homens tornarem-se escravos, atualmente tornou-se o de
serem alienados psíquicos, autômatos. Pudessem encontrar uma alternativa
saudável ao conflito, haveriam de reconhecer a importância do outro nos
vínculos de cooperação e solidariedade. Mas, a solidão e a impotência
encontraram na indústria moderna artifícios da felicidade de consumo e
estímulos para o rápido alívio psicológico da condição humana – que em
seu dinamismo tende a procurar soluções de alguma forma, com
possibilidades de satisfação, ainda que ao preço da violência, da
neurose e servidão voluntária. Explicando o fenômeno do nazifacismo, que
bem conheceu, esclarece que a ânsia de poder não é originada da força,
mas da fraqueza.
Fromm faz assim uma análise da patologia da alienação psíquica
inconsciente da sociedade industrial, que se caracteriza pelo
comportamento social consumista e pelo sistema patriarcalista
autoritário, reclamando uma necessidade ética urgente de mudanças nas
determinações sócio-econômicas. Do ponto de vista psicopatológico,
segundo ele, o centro gravitacional da cultura capitalista é o
consumismo passivo. O consumo, no entanto, é próprio da vida, do
crescimento biológico e das relações humanas; afinal, precisa-se comer,
vestir, trocar valores de uso econômico e outros. Todavia, há uma
espécie compulsiva de consumo que unicamente visa aliviar a ansiedade, a
insegurança ou mesmo o desespero subjacentes à nossa época.
Ironicamente, constata ele, o homem contemporâneo, com seu avançado
conhecimento intelectual, desconhece-se enquanto totalidade espiritual,
não sabe bem o que deseja e por isso não consegue satisfazer-se
plenamente, sentindo-se vazio de realizações.
Pode-se dizer, acertadamente, que ele foi o primeiro filósofo a
construir uma antropologia filosófica, e uma problematização da
liberdade, vinculando intimamente os pensamentos de Marx e Freud,
reconhecendo claramente a superioridade do primeiro. A bem dizer, foi em
1930, com o livro o Dogma de Cristo (1986)2, que Fromm uniu de maneira
concreta esses dois pensadores. Quem o afirma, com razão, é Franz
Borkenau3, erudito do partido comunista que freqüentou o ambiente do
Instituto de Frankfurt e escreveu uma resenha do mesmo texto no
lançamento da revista Zeitschrift für Sozialforschung, de publicações
desta Escola. Trata-se ali do uso da psicanálise aplicado aos fenômenos
históricos, compreendendo as idéias e ideologias individuais como um
resultado de necessidades psíquicas básicas submetidas a condições
sociais e econômicas específicas. No entendimento de Martin Jay4, Fromm
então afirmara em termos psicológicos o que Horkheimer e Marcuse, depois
de sua ruptura com Heidegger, diziam sobre a noção abstrata de
historicidade.
Para Fromm a função da ideologia e do autoritarismo pode
equiparar-se aos sistemas neuróticos. A correlação direta entre o
conceito marxista de “ideologia” e o conceito psicanalítico de
“racionalização” veio a ser feita por Erich Fromm em 1932, no artigo
Método e Função de uma Psicologia Social Analítica5, onde ele afirma que
a psicanálise pode mostrar como a situação econômica é transformada em
ideologia, através dos impulsos naturais do homem. Mas, é no apêndice de
O Medo à Liberdade que Fromm expõe sua teoria do “caráter social”6, de
uma estrutura libidinal típica, deduzida da soma de caracteres
individuais de uma sociedade de classes. Esse caráter se constitui de
uma base ou norma de socialização que atende interesses da elite
dominante e serve de modelo à feitura de um caráter individual. O tipo
de caráter social é produzido e recompensado individualmente pela
comunidade conforme o que cada época exige. Então a necessidade social é
internalizada num impulso da personalidade, de tal forma que ela se
aproximará automaticamente mais do comportamento coletivo e sustentará a
coesão da estrutura sócio-econômica geradora dessa mesma necessidade.
Para Fromm, o processo de ideologização é politicamente determinado por
vários agentes sociais, como a escola, a família, a comunicação de
massa, entre outros.
Em O Medo à Liberdade, ele acentua o pessimismo de Freud e nega seu
instinto de Tânatos, equiparando-o, no entanto, com a necessidade de
destruição, dizendo que o desejo de destruir é bastante variável em
grupos sociais diferentes e mesmo dentro da própria cultura. Para Fromm,
o instinto de morte ou a necessidade de destruição eram produtos da
frustração do instinto de vida7. Afastada a dualidade dos instintos de
vida e morte, ele retorna à dicotomia freudiana anterior, aos impulsos
eróticos e de conservação. Nessa obra, ainda recusa a teoria
metapsicológica da libido, de Freud. A novidade é que com esta também
rechaça sua própria interpretação “psicologista” em O Dogma de Cristo,
onde pretendera explicar a formação do cristianismo primitivo como o
resultado da ambivalência face à imagem do pai.
Ao se fazer uma incursão na obra de Erich Fromm, sobre a questão da
liberdade, observa-se que em 1941 tem fim sua ênfase no determinismo
social absoluto. Abriu-se espaço para a possibilidade de escolhas reais
na sociedade, na medida em que ele passou a entender que o indivíduo
adquire um maior grau de conscientização de sua psique. Pela primeira
vez surge o conceito de “natureza humana”, mediante a necessidade
individual de relacionar-se com o mundo exterior e assim evitar a
solidão intolerável. Mas, o quadro geral das necessidades essenciais do
homem só viria a ser plenamente elaborado em Psicanálise da Sociedade
Contemporânea (1983)8, em 1955. Até então não há uma visão clara, aos
seus olhos, daquela essência humana, definida em si mesma, para além das
variáveis culturais. John H. Schaar, numa crítica a Fromm, diz algo a
respeito:
“É interessante especular sobre as razões que Fromm teve para
modificar a posição sobre a questão da natureza humana essencial, contra
o determinismo social. Talvez a explicação possa ser explicada em
termos de um crescente otimismo ostensivo, quase fanático, em sua obra.
Em O Medo à Liberdade, Fromm propôs uma tese determinista pesadamente
social, como um antídoto ao pessimismo freudiano. Em suas obras
posteriores, teve de reformular a natureza humana, considerando o
otimismo intrínseco a ela, porque a ameaça ao homem passou a ser não o
pessimismo freudiano, mas as sociedades insanas. O otimismo de Fromm
permaneceu aproximadamente o mesmo, mas os inimigos do otimismo se
haviam modificado.”9
Em O Medo à Liberdade ele estuda a evolução histórica das
comunidades pré-individualistas, anteriores à modernidade industrial,
que valorizam a totalidade social, mas negligenciam o indivíduo. Após se
referir ao nascimento da história cultural do homem, faz um paralelo
com o nascimento biológico do indivíduo. Exatamente como uma criança
nasce com todas as potencialidades humanas a serem desenvolvidas sob
condições sociais e culturais favoráveis, também a raça humana se
transformaria, no processo histórico, naquilo que ela é potencialmente.
Segundo Fromm, o nascimento de cada pessoa reproduz os mesmos conflitos
básicos encontrados no imaginário e histórico surgir da civilização. De
maneira que ele põe a evolução filogenética ao lado da evolução
psico-ontogênica, comparando abordagens paleo-antropológicas com
abordagens psicológicas. Na evolução da história cada geração
incorporaria em si todo o processo de busca de liberdade e de satisfação
produtiva das necessidades básicas da condição humana, obtido pelas
gerações anteriores. Fromm entende que a liberdade não é uma questão
metafísica, é o resultado inevitável do processo de individuação e de
crescimento da cultura. Segundo ele, a história da humanidade é a
história da individuação em busca da liberdade, lembrando que o século
do nazismo deu provas suficientes de que a civilização, e os indivíduos
em geral, historicamente abandonaram o duro esforço da liberdade,
preferindo os mecanismos de fuga da alienação.
Na origem de sua existência, o homem se viu como um estranho no
mundo; sentiu-se solitário e temeroso. Compelido para fora da Natureza,
ele rompeu com as determinações biológicas do puro instinto, permitindo
que a vida tomasse consciência de si mesma através da possibilidade de
desenvolvimento da razão. Segundo Erich Fromm, num momento qualquer da
Natureza, essa nova espécie animal, o homem, perdeu sua plástica
capacidade de adaptar-se ao ambiente selvagem, e tornou-se
biologicamente o ser mais inerme e desamparado do gênero. Se, em
princípio, o homem se encontrava na totalidade com a Natureza, tornou-se
fragmentado e carente do sentimento de união ao afastar-se dela. Devido
à sua consciência imaginativa, capaz de transcender o instante
presente, ele também descobriu o involuntário fato de que sua vida
termina com a morte. A razão, uma vez deduzindo a finitude humana,
viu-se presa à dicotomia irresolúvel entre vida e morte. E pressentindo
jamais haver tempo suficiente para concretizar todas as suas ambições de
vida, então experimentou a sensação fatídica da impotência.
Há, pois, conflitos existenciais filosoficamente inerentes à
condição humana. E a necessidade de encontrar soluções para essas
dicotomias congênitas, tanto da espécie quanto do indivíduo, é a causa
original de todas as motivações psicológicas do homem. Reagindo àquelas
contradições ontológicas do nascimento da consciência, a auto
sobrevivência psíquica busca uma direção humana que somente se
desenvolve durante o crescimento da cultura, valendo-se dos poderes
imanentes a si mesma: a capacidade de amar e trabalhar numa atividade
produtiva, reintegrando-se espiritualmente com a unidade cósmica, viva,
da Natureza; e a capacidade de imaginação e razão, de conhecer
objetivamente a realidade, a fim de tornar o espaço do mundo
significativo e habitável para o homem. A bem dizer, o homem nunca
deixará de tentar desfazer-se, fugir, da sua existencial inquietação
interior que o impele a ser si próprio e por si próprio, ou a concluir o
processo evolutivo de nascer-se humano.
Essa necessidade básica de reintegração e unidade encontra, na
psique, duas alternativas de solução. Numa delas, pode-se querer
inconscientemente regredir à vida animal pré-humana anterior à
racionalidade, com o propósito de apaziguar a insuportável sensação de
isolamento. De que maneira? Abolindo a consciência de si mesmo, de suas
qualidades humanas intrínsecas a serem desenvolvidas; fugindo às
responsabilidades e esforços do crescimento e da liberdade. Nessa
intenção regressiva de sedar os conflitos internos da mente, os
indivíduos podem criar ideologias, socialmente aceitas, e prazeres
narcisistas que recalquem a angústia ontológica do sentimento de
solidão. Além de evitarem a percepção racional, também falseiam uma
relação harmônica e integradora com o mundo. É o caso da violência
urbana coletiva, num quadro de folie a millions, quando milhões de
pessoas compartilham consensualmente dos mesmos vícios, de uma maneira
não-problemática; numa sociedade “neurótica” igualmente regressiva. O
mesmo acontece com as graves psicopatologias individuais, sendo estas as
fugas regressivas que não foram culturalmente assimiladas como
“normalidade”. Como revela o título da obra, é o medo à liberdade.
É importante esclarecer que para Erich Fromm as culturas tribais, em
estado de pré-individualização, da mesma forma, constituem um estágio
de solução regressiva. Para ele, o processo de individuação e
diferenciação individual denota uma evolução irreversível da qualidade
do amor erótico na comunidade primitiva para a qualidade do amor erótico
individual, encontrado na civilização moderna. Porque uma vez que o
homem adquire um mínimo de liberdade, individualismo e racionalidade,
verdadeiramente não há, em última instância, como descartar-se daquilo
que o torna humano e, no entanto, o tortura: sua razão e percepção de si
mesmo, que é para ele o fardo de ser-se homem.
A segunda alternativa de solução às dicotomias da situação humana é
chamada por Fromm de progressiva. É a conquista de uma nova união
existencial-espiritual mediante só o desenvolvimento de todas as
faculdades humanas, em potência no indivíduo; o que implica o
reconhecimento da humanidade universal dentro de cada um e dentro das
limitações impostas pelas leis exteriores à nossa subjetividade. Esta é
verdadeiramente a solução para o problema da harmonia perdida, e também a
única oferta de liberdade real para o projeto político de uma sociedade
humanista. O nascimento humano é visto, segundo Fromm, como um longo e
árduo processo de maturação do amor e da razão, por meio dos quais o
indivíduo se liberta do triste sentimento de separação da harmonia com a
Natureza; sem jamais poder, de fato, voltar à origem. O problema do
nascimento exige uma compreensão ampla da situação humana muito além da
excessiva importância conferida ao seu aspecto meramente perinatal. O
recém-nascido provavelmente dá-se muito pouca conta do que significa
nascer. Para Fromm, “nascemos” a todo instante. A todo instante
defrontamo-nos com uma pergunta: devemos regredir ou evoluir?”
Responsável - Will Goya
_____________________
1. FROMM, E. O Medo à Liberdade. Tradução de Octávio Alves Velho. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983.
2. FROMM, E. O Dogma de Cristo - e outros ensaios sobre religião,
psicologia e cultura. Tradução de Waltensir Dutra. 5ª Ed. Rio de
Janeiro: GUANABARA, 1986.
3. JAY, Martin. La imaginación dialéctica. Tradução espanhola de Juan Carlos Curutchet, Madrid: TAURUS, 1974, p. 160.
4. JAY Martin, op. cit., p. 160.
5. FROMM, E. Crise da Psicanálise - ensaios sobre Freud, Marx e
Psicologia Social. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR,
1971, p.153-4.
6. Entretanto, o “caráter social” foi apresentado pela primeira vez
em Die psychoanalytische Charakterologie in ihrer Anwendung für die
Soziologie, in Zeitschrift für Sozialforschung, I, Hirschefeld, Leipzig,
1931.
7. FROMM, E. O Medo à Liberdade. op. cit., p.149s.
8. FROMM, E. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Tradução de E.
A. Bahia e Giasone Rebuá. 10ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983.
9. SCHAAR, John H. O Mundo de Erich Fromm. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1965, p. 51.
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