DIREITO DO MENOR X
DIREITO DA CRIANÇA
Iniciarei
esta apresentação comentando os Códigos de Menores de 1927 e o de 1979,
ressaltando o tratamento diferenciado reservado à família desestruturada e
precária, incidindo de modo particular sobre os direitos de pátrio poder, de
tutela, de legitimação dos filhos ilegítimos e os instrumentos pelos quais
legitimou-se a figura do juiz como o fiel a normatizar e intermediar as
relações destes pais e de seus filhos com o Estado.
Roberto da Silva
Membro da Subcomissão de Defesa dos Direitos da Criança e
do
Adolescente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.
Dedicando-me a
estudar o contexto sócio-político e cultural em que se constituiu a tradição de
concubinato, de geração de filhos tidos como ilegítimos, de constituição da
família brasileira, e como conseqüência de tudo isto, do abandono de crianças,
na presente conferência abordarei a evolução da construção jurídica através da
qual o Estado brasileiro pretendeu normatizar a política de assistência à
criança carente, órfã e abandonada.
Os
cursos jurídicos ensinam que as fontes do direito são a natureza, a tradição,
os hábitos, os costumes sociais e culturalmente consagrados. Tendo em mente
também que as leis são formuladas, na sua origem, para assegurar os direitos de
um protótipo de homem, que no caso brasileiro apresentava-se, no início do
século, como homem, branco, letrado e cristão.
Sendo assim, a mulher e a criança tornaram-se tributários destes
direitos apenas a partir da relação de parentesco e de consangüinidade com o
varão.
Com
estas premissas, teremos oportunidade de ver que se os conceitos ontológicos
fundamentam o capítulo referente à família no Código Civil Brasileiro, dando
origem a um ramo das ciências jurídicas, que é o Direito de Família, os hábitos
e os costumes social e culturalmente aceitos no Brasil fundamentaram uma
legislação paralela, o Direito do Menor, destinada a legislar sobre aqueles que
não se enquadravam dentro do protótipo familiar concebido pelas elites
intelectuais e jurídicas.
Iniciarei
esta apresentação comentando os Códigos de Menores de 1927 e o de 1979,
ressaltando o tratamento diferenciado reservado à família desestruturada e
precária, incidindo de modo particular sobre os direitos de pátrio poder, de
tutela, de legitimação dos filhos ilegítimos e os instrumentos pelos quais
legitimou-se a figura do juiz como o fiel a normatizar e intermediar as
relações destes pais e de seus filhos com o Estado.
Em
seguida abordarei o Estatuto da Criança e do Adolescente, tido como uma das
mais avançadas legislações de proteção à criança, e darei ênfase à
fundamentação que ele recebeu das convenções e dos tratados internacionais, já
na perspectiva de proteção dos direitos humanos, constituindo-se em um
instrumento pelo qual pode se dar a transição,
gradativamente, da tutela da criança e da família em situação de risco pessoal
e social, da figura do juiz para o educador social.
Apresentarei
também um breve panorama do estágio atual de implantação do
ECA no país, relatando as principais conquistas e as principais
dificuldades na sua efetivação.
A Construção do
Direito do Menor
Desde
1916 o Brasil possui, ainda em pleno vigor, um Código Civil, que basicamente
regula os direitos individuais, o direito de propriedade e o Direito de
Família.
Na
parte referente ao Direito de Família estão especificadas as obrigações dos
pais em relação aos seus filhos, desde o nascimento até a idade de 21 anos.
Dentre tais obrigações estão o direito de filiação, a sucessão no nome e na
herança, a alimentação, a educação e a saúde, entrando o Estado apenas a título
complementar, se faltar a proteção familiar.
O
Código de Menores de 1927, que consolidou toda a legislação sobre crianças até
então emanada por Portugal, pelo Império e pela República, consagrou um sistema
dual no atendimento à criança, atuando especificamente sobre os chamados
efeitos da ausência, que atribui ao Estado a tutela sobre o órfão, o abandonado
e os pais presumidos como ausentes, tornando disponível os
seus direitos de pátrio poder. Os chamados direitos civis, entendidos
como os direitos pertinentes à criança inserida em uma família padrão, em
moldes socialmente aceitáveis, continuou merecendo a proteção do Código Civil
Brasileiro, sem alterações substanciais.
No que se
refere à família, a mais significativa das poucas alterações ocorridas de 1916
para cá foram a normatização do desquite e da separação judicial, com a
aprovação da Lei do Divórcio (n° 6.515/77), aprovada em 1977, da lavra do
Senador Nelson Carneiro e a que regulamentou a investigação de paternidade (n°
8.560/1992), com o claro propósito de assegurar os mesmos direitos de filhos
legítimos aos filhos concebidos fora do casamento, ambas significando a
consagração em lei de uma prática social e culturalmente aceita e amplamente
difundida.
O
descumprimento de quaisquer das obrigações estipuladas aos pais pelo Código
Civil, bem como a "conduta anti-social" por parte da criança passou a
justificar a transferência da sua tutela dos pais para o Juiz, e
conseqüentemente, do Código Civil para o Código de Menores.
O
Código de Menores de 1927 destinava-se a especificamente a legislar sobre as
crianças de 0 a
18 anos, em estado de abandono, quando não possuíssem moradia certa, tivessem
os pais falecidos, fossem ignorados ou desaparecidos, tivessem sido declarados
incapazes, estivessem presos há mais de dois anos, fossem qualificados como
vagabundos, mendigos, de maus costumes, exercessem trabalhos proibidos, fossem
prostitutos ou economicamente incapazes de suprir as necessidades de sua prole.
O
Código denominou estas crianças de "expostos" (as menores de 7 anos),
"abandonados" (as menores de 18 anos), "vadios" (os atuais
meninos de rua), "mendigos" (os que pedem esmolas ou vendem coisas
nas ruas) e "libertinos" (que freqüentam prostíbulos).
O
mesmo Código estabeleceu que os processos de internação destas crianças e o
processo de destituição do pátrio poder seriam gratuitos
e deveriam correr em segredo de justiça, sem possibilidades de veiculação
pública de seus dados, de suas fotos ou de acesso aos seus processos por parte
de terceiros.
O
Código de Menores também instituiu o intervencionismo oficial no âmbito da
família, dando poderes aos Juizes e aos Comissários de Menores, pelo Artigo
131, para vistoriarem suas casas e quaisquer instituições que se ocupassem das
crianças já caracterizadas como "menores".
Como
resultado das negociações para erradicar o Sistema da Roda e a Casa dos Expostos
garantiu-se também o segredo de justiça, reservando-se às entidades de
acolhimento de menores e aos cartórios de registro de pessoas naturais o sigilo
em relação aos genitores que quisessem abandonar os seus filhos, garantindo-se
em particular o sigilo da mãe quanto ao seu estado civil e as condições em que
foi gerada a criança.
Pelo
seu Artigo 55, o Código de 27 conferiu também ao Juiz plenos poderes para
devolver a criança aos pais, coloca-la sob guarda de outra família,
determinar-lhe a internação até os 18 anos de idade e determinar qualquer outra
medida que achasse conveniente.
Apenas
no Artigo 68 o Código ocupou-se do já então denominado "menor
delinqüente", já fazendo a diferenciação entre os menores de 14 anos e os
de 14 completos a 18 anos incompletos, sempre deixando
clara a competência do Juiz para determinar todos os procedimentos em relação a
eles e aos seus pais. Estabeleceu-se também a obrigatoriedade da separação dos
"menores delinqüentes" dos condenados adultos, mas em 1940 foi
promulgado o Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n° 2.848/40), consagrando a
inimputabilidade criminal do menor de 18 anos de idade, depois regulamentada
pelo Decreto-lei n°3.914/41 e até hoje em vigor.
Aos
delinqüentes maiores de 16 anos instituiu-se a possibilidade da "liberdade
vigiada", pela qual a família, ou os tutores, deveria responsabilizar-se
pelo processo de regeneração do menor, com as obrigações de reparação dos danos
causados e de apresentação mensal do menor em juízo.
O
Código de Menores estendeu a autoridade do Juiz sobre os jovens de 18 a 21 anos de idade,
concedendo-lhes atenuantes frente ao Código Penal, mas determinando o
recolhimento em
Colônias Correcionais dos vadios e dos jogadores de capoeira
pelo prazo de um até cinco anos.
O
Código de 27 estabeleceu como impedimento para o recebimento ou manutenção
destas crianças em casa o fato de qualquer pessoa da família ter sido condenada
pelos Artigos 285 a
293, 298, 300 a
302 do Código Penal, por ser perigosa ou anti-higiênica, se o número de
habitantes fosse excessivo, e se, por negligência, ignorância, embriaguez,
imoralidade ou maus costumes, fosse incapaz de se encarregar da criança.
O
Artigo 48 estabeleceu que passados trinta dias após a notificação do
recolhimento da criança, sem que o pai, a mãe ou tutores se manifestasse,
qualquer pessoa idônea poderia requerer diante do juiz os direitos de pátrio
poder sobre a criança.
No
caso de crianças que tivessem sido encaminhadas à
famílias substitutas, foi concedida a possibilidade da legitimação adotiva por
cônjuges casados ha mais de cinco anos, por casais que não pudessem ter filhos
ou por viúvos e viúvas, ocasião em que a criança passaria a ter todos os
direitos de filho legítimo e passaria então a reger-se a sua tutela pelo Código
Civil e não mais pelo Código de Menores, isto é, a inclusão em uma família
legalmente constituída e julgada moralmente capaz tinha o poder de fazer cessar
sobre ela a jurisdição do juiz.
O
Código Penal, que data de 1940 e também está ainda em vigor, estabeleceu penas
de detenção de seis meses a três anos ao genitor que abandonasse crianças,
aumentou-a para pena de reclusão de um a cinco anos, se do abandono resultassem
lesões corporais de natureza grave, e se o abandono causasse a morte da criança,
a pena era de quatro a doze anos, agravada se o abandono ocorresse em lugar
ermo onde não fosse possível o socorro à criança.
A
situação acima retratada caracterizou o que se convencionou chamar
"Doutrina do Direito do Menor", ao mesmo tempo uma derivação do
Direito de Família e uma nova especialização dentro das ciências jurídicas, que
até 1990 chamou-se Direito do Menor e
constituiu-se em cadeiras específicas nos cursos de direito como
orientou a organização da magistratura brasileira, com a criação do Juízo
Privativo de Menores (Lei n° 2.059/25), do Conselho de Assistência e Proteção
do Menor (Decreto 3.228/25), do Serviço Social de Menores (1938) do Serviço de
Colocação Familiar (Lei n° 560/49), da figura do Juiz de Menores, do
Comissariado de Menores, do Serviço de Assistência ao Menor, sendo que os
procedimentos de internação foram disciplinados por provimentos dos Conselhos
Superiores da Magistratura em
cada Estado brasileiro.
A Doutrina da Situação Irregular
A
Doutrina da Situação Irregular, que substituiu a Doutrina do Direito do Menor,
ao ser aprovado o Código de Menores de 1979, é uma construção doutrinária
oriunda do Instituto Interamericano del Niño, órgão da OEA, do qual o Brasil
participa, juntamente com os Estados Unidos, Canadá e os demais países das
Américas. Sua formulação teórica é atribuída ao jurista argentino Ubaldino
Calvento e teve como maior propagador no Brasil o Juiz de Menores do Rio de
Janeiro, Alyrio Cavallieri.
A Associação Brasileira de Juizes de Menores
incorporou tal conceito a partir do seu XIV Congresso, realizado no Chile em
1973, sob a justificativa de que se
adequava à tradição legislativa brasileira, de só tomar conhecimento da
problemática da criança a partir do momento em que se configurasse estar ela em
"situação irregular" junto à família. De fato, as alterações
promovidas no Código de 27 ao longo dos anos, particularmente pelas leis n°
4.655/65, 5.258/67 e 4.439/68, foram todas no sentido de
especificar a natureza do tratamento necessário ao "menor infrator",
distinguindo-o do órfão e do abandonado, ainda que todos fossem caracterizados
como em "situação irregular".
Alyrio
Cavallieri foi quem propôs e fez aprovar no Código de Menores de 79 a substituição das
diferentes terminologias pelas quais se designava a criança, exposto,
abandonado, delinqüente, transviado, infrator, vadio, libertino, etc.,
reunindo-os todos sob a mesma condição de "situação irregular".
Sob
esta categoria o Código de Menores de 1979 passou a designar as crianças
privadas das condições essenciais de sobrevivência, mesmo que eventuais, as
vítimas de maus tratos e castigos imoderados, as que se encontrassem em perigo
moral, entendida como as que viviam em ambientes contrários aos bons costumes e
as vítimas de exploração por parte de terceiros, as privadas de representação
legal pela ausência dos pais, mesmo que eventual, as que apresentassem desvios
de conduta e as autoras de atos infracionais.
A
transição entre os Códigos de 27 e de 79 ocorreu efetivamente com a criação da
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em dezembro de 1964, que modelou a
criação das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, ainda hoje existente em
alguns estados brasileiros.
A
criação da Funabem implicou na formulação de uma Política Nacional
do Bem-Estar do Menor, a que teve de subordinar-se todas as entidades públicas
e particulares que prestavam atendimento à criança e ao adolescente.
Concebida
para ter autonomia financeira e administrativa, a Funabem incorporou toda a
estrutura do Serviço de Assistência ao Menor existente nos estados, incluindo o
atendimento tanto aos carentes e abandonados quanto aos infratores.
É
preciso entender que a Funabem e as Febens estaduais foram concebidas no bojo
de uma ampla reforma, entendida como conquista da Revolução de 64, que incluiu
a outorga de uma nova Constituição em setembro do mesmo ano, a decretação de
vários atos institucionais, como o AI-5, e por orientação do governo e das
agências americanas, a reforma do sistema educacional brasileiro a partir dos
acordos MEC/USAID, e posteriormente, a reforma do ensino universitário em 1968,
com o objetivo deliberado de constituir barreiras ideológicas, culturais e
institucionais à expansão da ideologia marxista, que então estava em voga em
todo o continente sul-americano.
A
questão do menor passou a ser tratada no âmbito da doutrina de Segurança
Nacional, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de Guerra e teve como
matriz americana o National College War e a sua National Security Act, de 1947.
A criação de
uma fundação nacional foi um projeto cultivado desde a realização da 1a Semana
de Estudos dos Problemas de Menores, que se sucederam depois pelos anos de 49,
50, 51, 52, 53, 56, 57, 59, 70, 71 e 73 sob o patrocínio do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, o que ocorreu também no Rio de Janeiro a partir de
1955.
Submetida
à Câmara dos Deputados em 1961,
a proposta foi rejeitada. Em 1964, um filho do então
Ministro da Justiça Milton Campos, foi barbaramente assassinado por
adolescentes moradores nos morros do Rio de Janeiro e o próprio Ministro,
juntamente com outros juristas do Rio de Janeiro, convenceram o presidente
General Humberto Castelo Branco a criar, por decreto, a almejada fundação
nacional.
Esboçada
dentro do espírito da Doutrina da Segurança Nacional, a formulação teórica da
Escola Superior de Guerra, que se constituiu no norteador das ações dos
governos militares, a Funabem propunha-se a resolver um problema nacional, pois
nas palavras de seu primeiro presidente, o médico Mário Altefender,... "cada
vez mais se acentuava a necessidade da elaboração de uma nova política, cuja
execução fosse entregue a um órgão federal, fazendo desaparecer a idéia de que
cada um pode resolver seus problemas locais, estanques, quase pessoais, sem pensar
na Nação, como que ignorando a existência de 22 Estados e territórios e que
tudo se chama Brasil" (In: Anais da X Semana de Estudos do Problema do
Menor, São Paulo, 1971:476).
A
tônica do seu discurso insistia em que... "o problema do menor, diretamente
ligado ao problema da família, tendo como agravantes fatores que todos nós
conhecemos [...] como a explosão demográfica, o problema da saúde, a deficiente
alimentação, a migração, o subemprego, a falta de religião, o desrespeito à
autoridade, a ignorância da pátria, o problema do menor não pode ser
solucionado com a idéia ingênua de construir abrigos. Infelizmente ainda se
percebe no Brasil a influência dessa detestável política. Questões como
mendicância, abandono de menores, delinqüência, ainda são tomados como
existentes porque os Juizes de Menores e a polícia são ineficientes".(idem)
Com
esta percepção quanto à problemática, o menor passou a figurar em lugar de
destaque na Doutrina da Segurança Nacional, passando a ser efetivamente tratado
como um problema de ordem estratégica, saindo da esfera de competência do Poder
Judiciário e passando diretamente à esfera de competência do Poder Executivo.
A concepção
arquitetônica e pedagógica das unidades da Funabem e das Febens inspirou-se,
como parecia óbvio naquele momento, no modelo americano desenvolvido, dentre
outros, por Donald W. Winnicott, para atendimento de crianças evacuadas ou
tornadas órfãs em virtude da Segunda Guerra Mundial.
Segundo
este psiquiatra e psicanalista americano "essas crianças [nossos
menores] em tempos de paz, podem ser classificadas em duas amplas categorias:
crianças cujos lares não existem ou cujos pais não conseguem estabelecer uma
base para o desenvolvimento delas, e crianças que têm um lar, mas nele, um pai
ou uma mãe mentalmente doente. Crianças como essas apresentam-se
em nossas clínicas em tempos de paz, e verificamos que necessitam justamente do
que precisavam as crianças que, durante a guerra, eram difíceis de alojar. Seu
ambiente familiar as frustrara. Digamos que o que essas crianças precisam é de
estabilidade ambiental, cuidados individuais e continuidade desses cuidados.
Estamos pressupondo um padrão comum de cuidados físicos"
Orientado
por esse pensamento, instituiu-se o sistema de internação de carentes e abandonados
até os 18 anos e no tratamento dos infratores substituiu-se a "política
dos portões abertos" pela "política dos muros retentores", sob a
justificativa, apresentada pelo Grupo de Trabalho do Tribunal de Justiça de são
Paulo, que propôs a criação das unidades de infratores, de que era
necessária tranqüilidade para o trabalho dos técnicos e dos especialistas das
várias modalidades profissionais. Para possibilitar isso, o mesmo GT
recomendou que para essas unidades “...fossem contratados
inspetores de alunos, monitores ou atendentes jovens e vigorosos (com um mínimo
de escolaridade), a presença de guarda permanente (reedição do sistema
penitenciário), correlacionamento policial perfeito (o mesmo tratamento para
menores e adultos), que houvesse compreensão política (para justificar a
necessidade de isolamento das instituições totais) e, sobretudo, confiança
social (para que não houvesse ingerência no que acontecia dentro dos muros das
instituições).
Ao
mesmo tempo em que o sistema educacional brasileiro foi afetado pela Doutrina
da Segurança Nacional, com a introdução de elementos curriculares que
reforçassem os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, a educação das
crianças e adolescentes sob a tutela da Funabem/Febem passou a ser feita segundo
os preceitos do militarismo, com ênfase na segurança, na disciplina e na
obediência.
É
importante ressaltar que os princípios da Declaração de Genebra sobre os
Direitos da Criança, de 1924, não teve nenhuma repercussão na redação final do
Código de Menores de 1927. Da mesma forma os legisladores brasileiros não foram
sensíveis aos princípios já consagrados na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de
1948 e no Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que obrigou os países
signatários a adotarem em seu direito interno os princípios da Convenção,
figurando ali a proteção à família e os direitos da criança, assim como a
Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 20 de novembro de
1959, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais acima citados, ambos
de 1966, não tiveram nenhuma influência significativa na redação final do
Código de Menores de 1979, ainda que o Brasil fosse sensível à agenda de
discussões da Organização dos Estados Americanos, como ficou patente na adoção
da doutrina da Proteção Integral.
É
que entre as décadas de 20 e 70 formava-se no Brasil, sobretudo dentro do Poder
Judiciário, uma "escola menorista", que dialogava com os países
sul-americanos e mostrava-se sensível apenas às discussões travadas no âmbito
da Organização dos Estados Americanos.
O
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, não obstante ter sido aprovado
pela ONU em 16 de dezembro de 1966, só foi ratificado pelo Brasil em 24 de
janeiro de 1992, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente, já aprovado,
passou a incorporar as regras previstas nos artigos 2°, 14, 17, 23 e 24 do
Pacto, que condenavam o tratamento diferenciado para crianças em razão da forma
como fora concebido, de sua origem social ou de sua condição econômica,
preceitos estes presentes no sistema dual enunciado pela subordinação de
crianças ora ao Código Civil ora ao Código de Menores, segundo a sua composição
familiar e origem social.
As
mesmas objeções existiam em relação ao artigo 10° do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, também só
ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.
A
Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro de 1989 e
ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, portando depois da aprovação do ECA, é o mais completo tratado internacional sobre os
direitos da criança, colocando-a, ao longo de seus 54 artigos, em posição de
absoluta prioridade na formulação de políticas sociais e na destinação de
recursos públicos.
A
Doutrina da Proteção Integral
A
Doutrina da Proteção Integral do Menor foi enunciada inicialmente na Declaração
dos Direitos da Criança, em 1959, mas o 8° Congresso
da Associação Internacional de Juizes de Menores (Genebra, 1959) posicionou-se
no sentido de que não era função do Poder Judiciário assegurar à criança
direitos tão amplos como o direito ao nome, à nacionalidade, à saúde, à
educação, ao lazer e ao tratamento médico dos deficientes.
A posição majoritária, defendida por Alyrio Cavallieri, e
que redundou na adoção da Doutrina da Situação Irregular, era no sentido de a
Justiça de Menores limitar-se à aplicação do Direito do Menor, relegando os
Direitos da Criança para a competência do Poder Executivo.
Nas décadas de 60 e 70 Juizados de Menores
como o de São Paulo atuaram hegemonicamente na área da
criança, legislando, normatizando e criando as estruturas de atendimento. No
Rio de Janeiro o Juizado não assumia as funções executivas e em todos os
estados brasileiros havia esta indefinição quanto ao que era da competência do
Direito da Criança e do Direito do Menor, misturando-se nos juizados as funções
executivas e judiciárias.
A
criação da Funabem e das Febens estaduais deslindou apenas uma das questões: o
Juizado de Menores passou a ocupar-se exclusivamente do Direito do Menor, com
ênfase nos infratores, e as fundações assumiram os encargos de formulação e execução
das políticas de atendimento. Antes desta definição a política de atendimento
ao menor era, de acordo com o Estado, centralizada ora na Secretaria da
Justiça, na Secretaria da Segurança Pública ou na Secretaria da Promoção
Social, até que, no início da década de 80, com a grande vitória eleitoral do
PMDB, fomentou-se a criação de uma Secretaria do Menor ou algo equivalente nos
Estados.
Continuavam
indefinidas ainda as competências quanto aos Direitos da Criança e aos Direitos
do Menor, sem o quê não seria possível a adoção da
Doutrina da Proteção Integral.
Foi
a conjuntura interna do país na segunda metade da década de 80, mais do que
todas as Declarações e Convenções internacionais, que sinalizou com as
condições propícias à adoção da Doutrina da Proteção Integral.
O
grande movimento pela democratização do país colocou na ordem do dia a pauta
dos direitos humanos, que basicamente significava um veemente repúdio a tudo o
que advinha do Regime Militar.
O
reordenamento jurídico do país deu-se pelo Movimento Nacional Constituinte e
pela promulgação de uma Constituição Federal em 1988. A marca do
reordenamento jurídico foi a "remoção do entulho autoritário" e a
preocupação que norteou os constituintes e as pressões dos movimentos populares
e da sociedade organizada foi no sentido de assegurar a inclusão, aprovação e
manutenção de diversos dispositivos que colocassem o cidadão a salvo das
arbitrariedades do Estado e dos Governos.
O
Artigo 226 incorporou todos os preceitos das Cartas Internacionais de 45, 48,
51, 59, 66, 68, 69 e 79, no que se refere a proteção à
mulher e à família, mas foi no Artigo 227, ao exigir uma lei específica que o
regulamentasse, que possibilitou, através do Estatuto da Criança e do
Adolescente, finalmente aprovado em 13 de julho de 1990, que o constituinte
incorporou como obrigação da família, da sociedade e do Estado, assegurar, com
absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente.
Criança,
até 12 anos, e adolescente, até 18, são então definidos como "pessoas em fase
de desenvolvimento", eliminou-se a rotulação de "menor",
"infrator", "carente", "abandonado", etc.,
classificando-os todos como crianças e adolescentes em situação de risco.
A
legislação específica (o ECA), depois normatizou a atuação do Poder Judiciário
na defesa destes direitos, atribuiu ao Ministério Público e aos Conselhos
Tutelares a promoção e a fiscalização dos mesmos direitos e aos Conselhos
Nacional, Estaduais e Municipais a atribuição de formularem as políticas
nacionais, estaduais e municipais para a criança e o adolescente. Mesmo no ECA, a Justiça da
Infância e da Juventude e o juiz continuaram com a possibilidade de intervenção
junto à família e à criança nos casos típicos de Direito Processual Civil e
Direito Processual Penal, como a guarda, tutela, adoção, investigação de
paternidade e maus-tratos.
O
juiz passou a ser obrigatoriamente assessorado por uma equipe
interprofissional, que no Código de 79 ficava ao seu arbítrio consultar ou não.
A equipe técnica (normalmente composta por um psicólogo e um assistente social,
no mínimo), tem o mesmo status científico, pois tanto o juiz quanto o psicólogo
e o assistente social são bacharéis, mas o ECA ainda
fez uma concessão ao Poder Judiciário, atribuindo maior autoridade ao juiz,
quando eu entendo que ali está configurado um conselho de sentença que
impediria definitivamente que as decisões relativas à criança fossem tomadas
por uma única pessoa.
Farei
a seguir uma breve exposição do estágio atual da implantação do
ECA, dos Conselhos Tutelares e Municipais no Brasil, situando as suas
conquistas e dificuldades.
É
preciso entender que o ECA, como a constituição e os
demais dispositivos de garantia das liberdades individuais dela derivados
possui um certo ranço revanchista em relação à cultura autoritária que o Brasil
viveu sob o regime militar.
O ECA inaugurou uma nova ordem jurídica e institucional para
o trato das questões da criança e do adolescente, estabelecendo limites à ação
do Estado, do Juiz, da Polícia, das Empresas, dos adultos e mesmo dos pais, mas
não foi capaz ainda de alterar significativamente a realidade da criança e do
adolescente. A mudança de nomenclatura, substituindo os rótulos pejorativos de
"menor", "infrator", "abandonado" e etc., estabeleceu
a cultura do "politicamente correto", mas quem estava nas ruas ou nas
instituições antes do ECA, hoje, se adulto, está no
Sistema Penitenciário ou continua sendo portador das marcas e dos estigmas
incorporados durante a infância.
Parcela
significativa da sociedade brasileira cultiva o sentimento de que o ECA, ao estabelecer limites ao exercício da autoridade
familiar, jurídica, institucional e policial sobre a criança e o adolescente,
reforçou também a impunidade aos delitos
cometidos por eles.
Neste sentido, as distorções mais visíveis na interpretação e aplicação do ECA é o uso que adultos, quadrilhas criminosas e o
tráfico organizado passaram a fazer da criança e do adolescente, iniciando-os
precocemente nas lides delinqüenciais. Crianças e adolescentes são recrutados
por adultos e por quadrilhas para fazerem os seus trabalhos sujos, tipo ser o
portador da droga e das armas ou exercer a vigilância armada nos locais de
tráfico. O resultado desta distorção foi o recrudescimento do extermínio de
crianças e de adolescentes por parte da polícia e dos grupos de justiceiros,
geralmente composto por policiais pagos por comerciantes das periferias das
grandes cidades e os clamores da sociedade no sentido de redução da maioridade
penal para os 16 anos.
O
Código Civil Brasileiro define a maioridade civil aos 18 anos e a maioridade
jurídica aos 21. A
maioridade eleitoral é estabelecida, opcionalmente, aos 16 anos, a maioridade
trabalhista aos 14 anos e o Código Penal Brasileiro estipula a maioridade penal
também aos 18 anos. Crianças menores de
12 anos autoras de ato infracional, de qualquer tipo, o ECA
manda o Conselho Tutelar aplicar medidas de proteção e medidas sócio-educativas
e aos maiores de 14 até 18 anos, o juiz pode aplicar medidas de internação pelo
período máximo de três anos, liberdade assistida e semiliberdade. Os mesmos
crimes, se praticados por adolescentes ou por adultos, podem receber penas de 3
ou 30 anos, e é neste sentido que se dá a distorção quanto à utilização de
adolescentes por parte de adultos, de quadrilhas e de gangues.
Este
é, em síntese, o quadro atual do pensamento jurídico-assintencial brasileiro no
que se refere à criança e aos adolescentes órfãos, abandonados ou que cometem
atos infracionais.
REFERÊNCIA:
AVALIERI,
Alyrio. Direito do Menor. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978.
SÃO
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Fonte
Retirado do Site: www.neofito.com.br
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