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Mundo dá adeus a Altamiro Carrilho
Altamiro
Carrilho vive a vida como se, desde o primeiro movimento, ela fosse
escrita em um pentagrama. Sua mãe se chamava Lira, o símbolo da música.
Em todos os aspectos, familiares e geográficos, sua trajetória sempre
esteve ligada à música. “Eu sou descendente de uma família pelo lado
materno em que todos eram músicos, desde o meu tataravô. Bisavô, avós,
tios, primos...”.
Com a simplicidade de quem se diz um homem do interior, Altamiro narra sua história como que improvisando na flauta. “O
meu tio mais velho era o maestro da banda 'Lira Árion'. Os outros cinco
músicos eram seus irmãos. Então, eu fui criado no meio de músicos e de
música: morava perto da sede da banda, assistia aos ensaios... E fui me
entusiasmando pelos sons dos instrumentos, diferenças de timbre, altura,
afinação, a forma como meu tio conseguia harmonizar aquilo tudo,
dirigir. Se um músico errava uma nota, ele dizia, o trompete trocou a
nota aí, aquela coisa. Eu fui criado dentro desse clima e, aos nove anos
de idade, já estava tocando caixa tarol na banda. Tocar percussão
ajudou muito na minha trajetória”.
A primeira flauta foi um presente de Natal. “Com cinco anos de idade comecei a tocar uma flautinha de lata que Papai Noel trouxe pra mim”.
A
destreza que o filho exibiu na flautinha de lata convenceu os pais de
que o talento precoce de Altamiro precisava ser lapidado com aulas. Mais
uma vez o destino bateu à porta de Altamiro, como que compondo outro
compasso dessa vida musical.
“Eu
comecei a fazer as minhas próprias flautinhas: serrava perto do ombro
do bambu, deixava toda a parte aberta, e ia furando com um ferro quente.
Furava e tocava, tirava uns sons agradáveis tocando sozinho em casa.
Nessa época, eu morava em Niterói. Um dia, o carteiro que entregava a
nossa correspondência parou, deu as cartas pra minha mãe e de repente
perguntou: ‘Que som bonito! Quem toca flauta aí na sua casa?’. Minha mãe
respondeu: ‘Não é flauta profissional não, é uma flautinha de bambu, o
meu filho mesmo que faz e tal, assim, assim’... O carteiro pediu para me
conhecer. E lá vim eu com a flautinha na mão, menino, onze anos por
aí... O carteiro me perguntou se eu queria estudar flauta. Eu disse
quero, e ele começou a me dar aulas gratuitas. Ainda emprestava a flauta
transversa dele para que eu estudasse. Em casa, eu me virava com a
flautinha de bambu mesmo”.
Nas
aulas gratuitas que recebia do carteiro, aprendeu pela primeira vez a
teoria musical. Altamiro se empenhava, embora tivesse pouco tempo para
estudar já que, além de freqüentar a escola, ainda trabalhava na
farmácia do tio. Foi nesse emprego que ele conseguiu economizar parte do
salário para comprar o primeiro instrumento.
“Era
uma flauta velha, mas muito velha, eu acho que era de milésima, ou
coisa parecida, toda amarrada de elástico, as molas quebradas,
destemperadas, sapatilha rasgada...”.
A necessidade de consertar a flauta, certamente revelou a Altamiro alguns segredos do instrumento. “Foi
uma luta, eu tive que fazer uma coisa de cada vez, sapatilha, as molas e
o elástico. Quando eu não consegui mais dinheiro para mudar todas as
molas, que era o mais caro, tinha que desmontar o instrumento. Então, eu
fui amarrando com elástico, desse elástico que os bancos usam pra
amarrar dinheiro, e ali eu fui amarrando as chaves pra substituir
a nota”.
Com
a flauta remendada, Altamiro resolveu ganhar o mundo. A porta de
entrada foram os programas de calouros. Venceu todos de que participou
até chegar ao maior desafio que músicos promissores poderiam enfrentar
nos anos de ouro do rádio brasileiro. “Eu disse: agora vai ser a prova final e me inscrevi no ‘Calouros em Desfile’, de Ary Barroso,
que não perdoava nada. Já havia oito semanas que ninguém ganhava o
primeiro prêmio. Eu, quando eu ouvi pelo rádio que estava acumulado,
sete semanas em que ninguém conseguia o primeiro prêmio e tal, já ia pra
oitava semana, eu me inscrevi, com a coragem mesmo de um gigante, mas
tranqüilo. Eu estudei com afinco a semana inteira, o professor, o
carteiro Joaquim Fernandes, deixou a flauta comigo... Ele acreditava em
mim, me incentivava muito, me orientava, ‘Olha, está quase bom, aqui
nesse trechinho você deveria tocar um pouquinho mais suave, para
aparecer o grave, sair mais bonito e mais exótico, fica um som fica
ainda mais exótico, um som imitando os indígenas’.
A peça escolhida por Altamiro foi uma música de Dante Santoro. “Era
a ‘Harmonia selvagem’, uma música difícil de executar, mas eu tinha uma
facilidade no dedilhado incrível, uma coisa espontânea, ninguém me
ensinou técnica de sopro, de embocadura, de nada, eu descobri tudo
sozinho. Então, eu fui ao programa do Ary Barroso,
fiz uma prece, disse ‘pé na tábua Altamiro, agora é sua vez’. Comecei a
tocar, estava indo bem quando, de repente, no meio da música,
arrebentou um dos elásticos que suspendia a nota que dava o fá
sustenido. O fá sustenido falhava toda vez que eu tocava, as outras
notas todas limpas, as dificuldades todas vencidas, só falhando no fá. Ary Barroso
percebeu: ao invés do gongo que ele teria dado a outra pessoa qualquer,
ele me deixou continuar até o fim. Eu terminei, o auditório aplaudiu
muito, aquela coisa toda, e Ary disse assim: ‘Meu filho vem cá’ - com
aquele jeito dele -, ‘você só falhou uma determinada hora e tocou a
música maravilhosamente, você tocou bem, essa música é difícil... Aí eu
contei rapidamente a minha história, ele me olhou e foi falando: ‘Isso é
uma porta de lavanderia, isso
não é uma flauta... Eu vou fazer uma coisa, vou te dar uma nova
oportunidade, vai lá pra dentro, se acalma um pouco, relaxa um pouco e
você vai voltar ao programa pra tocar novamente essa mesma música. Ô
contra-regra, arranja aí um elástico pro garoto’. Ele me arrumou um
elástico, eu consertei a flauta”.
Altamiro
foi o último finalista a ser chamado para se apresentar. Ary, de forma
proposital deixou o garoto para encerrar o programa.
“Ele
me chamou com toda alegria: ‘e agora o garoto da flauta amarrada de
elástico’. O auditório me recebeu como se eu fosse um profissional. Aí é
que foi também a minha surpresa maior, porque eu toquei limpo, mas
limpo, parecia uma gravação. Até o conjunto de Rogério Guimarães, na
época, que era o conjunto dele que fazia o programa, me aplaudiu. Quando
olhei, fiquei feliz com aquilo, aquela reação geral até dos músicos”.
A reação da platéia e dos músicos antecipou o final do concurso: Altamiro Carrilho levou para casa uma pequena fortuna.
“Era
muito dinheiro, oito prêmios acumulados. E foi um incentivo incrível:
com o dinheiro deu para comprar uma flauta decente. Não preciso nem
dizer que foi a primeira coisa que eu fiz... Aliás, segunda, a primeira
foi encher a dispensa, que a dispensa não tava lá muito boa. Serviu para
ajudar meus irmãos já que o meu pai estava doente na época... Daí por
diante eu fiquei muito animado, em todo lugar que eu ia era muito
aplauso... Foi assim que o Moreira da Silva me descobriu”.
Moreira
da Silva precisava de acompanhamento de bandolim e flauta para fazer as
introduções de suas músicas e chamou o menino Altamiro.
“Eu avisei
que era amador, mas o dono do conjunto disse que não fazia mal porque
eu tocava muito bem. Tinha 14 anos quando entrei pela primeira vez num
estúdio de gravação. Era o estúdio da Odeon, na Rua Visconde de Mário
Bloch, uma rua na Lapa. Lá estava eu no meio de profissionais, o melhor
conjunto do Brasil, o conjunto de Benedito Lacerda.
Benedito já estava bem doente, eu fui o substituindo devagarzinho.
Moreira da Silva conversou com Benedito pelo telefone, explicou que
queria dar oportunidade a um novo flautista, que era um talento, ele não
ficou aborrecido. Gravei, agradei, o diretor da fábrica me apresentou a
outro diretor da fábrica, o outro me deu um cartão pra eu ir a outra,
enfim, todos colaboraram pra que eu conseguisse gravar o primeiro disco.
Aí engrenou”.
Nos
primeiros anos de estudo com seu Joaquim, Altamiro estudou pelo “Método
de Garibaldi”, especial para solfejo. Quando, com a mesma sorte e
oportunidade dos anos iniciais, encontrou seu segundo professor, as
aulas ganharam um ritmo bem mais intenso. “O Moacir Lisserra, da
Escola Nacional de Música, me recebia em casa, porque não tinha
tempo para me dar aulas lá no Conservatório. Ele marcou uma vez por
semana para eu ir até a casa dele, lá em Santa Teresa. Pegava aquele
bondinho, ia lá, e o Moacir, ao invés de me dar uma aula de meia hora,
quarenta minutos, dava uma aula de três horas. Detalhe: não recebia um
tostão, não queria receber pelas aulas, eu disse, ‘mas por que
professor, assim eu fico encabulado, fico sem jeito’. E ele encerrou o
assunto falando ‘você merece, quando eu peço pra você estudar uma
página, você estuda três, me trás três páginas ao invés de uma, isso é
muito bom pra você e pra mim, porque você vai sair fora desses estudos
muito rápido’”.
Logo
depois, Altamiro, inquieto, curioso e ousado, foi procurar o mais
conhecido e respeitado dos flautistas brasileiros dos anos 1930 e 40: se
não ganhou aulas, ganhou novas oportunidades. “Eu fui agradecer ao Benedito Lacerda por ele ter permitido que eu gravasse no lugar dele, e acabei o substituindo num conjunto famoso que era do Canhoto (Waldyro Tramontano), mas essa é outra história...”.
“Além de Moacir Lisserra, que era o mais famoso professor da época, estudei com Celso Woltzenlogel, que até editou um método recentemente (n. e.: “Método Ilustrado de Flauta”, Ed. Irmãos Vitale);
com Ari Ferreira, primeiro flautista da Orquestra Sinfônica do Teatro
Municipal. E só assim, professores de primeiríssima linha. Eu procurava
porque eu digo ‘bom, o que os outros menores sabem eu também já sei,
então tem que puxar o carro à frente’. Até que apareceram umas viagens
para o exterior e eu tive aulas com um professor russo. Ele falava um
pouco de português, um português espanholado que ele aprendeu com um
argentino, ele era professor de flauta da Escola Nacional de Música de
Moscou”.
A
viagem para o exterior à qual Altamiro se refere foi a que ele fez como
integrante de um grupo de músicos patrocinado pelo governo brasileiro. A
caravana tinha o objetivo de divulgar nossa música nos Estados Unidos e
na Europa. Como já estava se tornando rotina, Altamiro de destacou pela
enorme musicalidade e conseguiu novas oportunidades no exterior
“Eu
já sabia percussão por intuição, aquilo serviu muito pra mim, com a
relação à divisão a percussão ajuda muito. Nas gravações, todo tipo de
ritmo diferente eu fazia. Foi aí que, na Inglaterra, uma cadeia de rádio
encomendou um disco só de ritmos típicos brasileiros, sem mistura
nenhuma. Alguém falou, ‘só quem pode resolver esse abacaxi aí é o
Altamiro, que está acostumado com regional, com bandinha, com banda de
reco-reco, com o que vier’. Eu fazia porque tinha facilidade para
assimilar ritmos. Fizemos então uma gravação com quinze ritmos
diferentes, teríamos muito mais pra fazer, trinta, quarenta, mas eles
quiseram quinze, os mais significativos que os brasileiros tocavam e
curtiam mais, então nós fizemos quinze diferentes. Eu fiz os arranjos lá
na hora, distribuí um rascunhozinho pra cada um, manuscrito mesmo, e
gravamos. A diretora da rádio gostou tanto, que nos deu um cachê
dobrado... Isso aí foi uma das passagens bonitas. Depois, estive pelos
Estados Unidos, estive pela Europa quase toda, os principais países da
Europa, sempre patrocinado pelo governo brasileiro, que era uma lei
Humberto Teixeira, aquela caravana famosa do deputado Humberto Teixeira,
do qual nós temos muita saudade
(n.e.: Humberto Teixeira, famoso parceiro de Luiz Gonzaga, foi deputado
federal e, em 1958, conseguiu aprovar no Congresso Nacional uma lei para
que o governo federal patrocinasse viagens de caravanas de músicos
brasileiros para divulgar a música brasileira no exterior. Entre os músicos dessas caravanas estavam Waldir Azevedo, Sivuca e Leo Peracchi)”.
Altamiro
tocou com os maiores músicos do mundo, populares e eruditos, e diz que
aprendeu muito com eles. Mas um merece um comentário especial.
“Tem um que eu admirava muito e no fim ele passou a ser meu admirador também, ficamos amigos como pai e filho: foi Benedito Lacerda.
Tem até uma história interessante: eu já estava na Rádio Tamoio, ele me
ouviu e disse para a esposa: ‘- Ô Ondina, eu estou tocando, mas eu não
conheço essa música, quando foi que eu gravei essa música?’. A esposa
respondeu ‘não, meu querido, não é você não, quem está tocando é um
garoto que se chama Altamiro Carvalho, não entendi bem o sobrenome, mas é
Altamiro o primeiro nome, ele é do regional de Cesar Moreno, não é
solista conhecido não’. Benedito então comentou, ‘mas ele tá muito
parecido comigo, eu não me conformo com isso!”. Quando terminou a música
o locutor falou, ‘vocês acabaram de ouvir, com o conjunto de Cesar
Moreno e Altamiro Carrilho na flauta, a música x’... Ele não agüentou:
vestiu um blusão, tirou o carro da garagem, e foi lá na Rádio Tamoio me
conhecer pessoalmente. Dali em diante a nossa amizade foi aumentando
cada vez mais, até eu freqüentar a casa dele num determinado dia da
semana. A gente tomava lanche, aí ele escolhia uma música pra duas
flautas e tocava junto comigo. O nosso estilo era idêntico, eu gostava
do estilo dele, então procurava fazer uma imitaçãozinha discreta. Isso
eu quero deixar bem claro, eu estava procurando o meu caminho, mas o
caminho mais curto seria puxar o estilo dele que era o melhor de todos,
mais alegre, ele tocava com muita disposição, com muita alegria, embora
não fosse um técnico, não era um concertista, mas era o músico popular
mais respeitado”.
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